
Criar o novo é muito raro. Aparentemente precisamos partir de algo conhecido para solucionar nossas necessidades. Trabalho, dedicação, estudo e intuição formam um conjunto poderoso na história das conquistas humanas. Sonhos podem contribuir como forma de acesso para “inovações”? Ouvi sobre o sonho da cobra mordendo seu próprio rabo há mais de 30 anos, contada pelos professores da disciplina de Química Orgânica, e agora chegou o momento de saber mais sobre esse assunto inusitado
Por Andrea Martha de Oliveira
CRF/PR 5451
12/06/2023
Este artigo é dedicado aos Prof. Gilberto L. Pozetti e Prof. Alberto C. Bernardi, disciplina de Química Orgânica da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da UNESP de Araraquara – SP
Entre 1854 e 1865, o químico alemão August Kekulé estava imerso em estudos sobre a configuração do átomo de benzeno, cuja fórmula química já era conhecida na época – C6H6. Esta substância foi isolada a partir do carvão por Michael Faraday e era usada em tintas e anilina.
Se tratava do início dos estudos da química orgânica, cujos compostos se comportavam de maneira muito diferente das substâncias inorgânicas já conhecidas.
Pois bem, durante os 11 anos de intensa pesquisa, Kekulé teve dois sonhos complementares sobre o assunto, um enquanto estava em um ônibus em Londres e o segundo em seu apartamento na Bélgica. O segundo sonho auxiliou na conclusão da estrutura do benzeno

O químico contou o sonho no discurso comemorativo de 25 anos da descoberta da estrutura do benzeno no ano de 1890. Explicou que trabalhava escrevendo um livro, sem conseguir se concentrar, quando cochilou em frente a lareira. Sonhou com átomos saltando diante dos olhos e fileiras de átomos como uma cobra. De repente a cobra agarrou sua própria cauda e começou a girar diante de seus olhos. Kekulé despertou e passou o restante da noite escrevendo esta possibilidade de configuração para o benzeno.
A visão incrível de uma cobra mordendo a cauda em movimento dá forma ao que acontece com os elétrons compartilhados nas ligações entre os carbonos.


Fonte: MARX e GILON, 2022
Foi admirável a coragem que o químico alemão teve ao divulgar a importância do sonho em sua descoberta, em um ambiente tão racional quanto a ciência. Imagino o que se passou na mente de seus colegas, escutando sobre cobras girando e movimento dos elétrons. Devem ter pensado que voltaram ao tempo da alquimia, nas origens da química, com desenhos simbólicos representando assuntos secretos. A cobra mordendo o próprio rabo é um símbolo muito antigo, o Ouroboros.

Ouroboros ou Oroboro é uma criatura mitológica, uma serpente que engole a própria cauda formando um círculo e que simboliza o ciclo da vida, o infinito, a mudança, o tempo, a evolução, a fecundação, o nascimento, a morte, a ressurreição, a criação, a destruição, a renovação. Muitas vezes, esse símbolo antigo está associado à criação do Universo. Sem início e sem fim, como a circulação dos elétrons no anel de benzeno.
Este símbolo é encontrado no antigo Egito, na Grécia, na alquimia, na maçonaria, provavelmente Kekulé o havia estudado. Nos dias de hoje se você fizer uma pesquisa sobre Ouroboros, verá que é relacionado a linguagem matemática, programação, criptomoedas e até a treinamentos de pessoas em empresas, ou seja, algo neste símbolo o mantém na realidade humana.

É necessário dizer que a aceitação do argumento do sonho não foi unânime. Há quem diga que na época da divulgação da descoberta, já havia conhecimento suficiente sobre estruturas cíclicas publicadas por outros pesquisadores que mereceriam o crédito do estudo. Mas, ao citar o sonho, Kekulé tomou para si todo o mérito da proposição.
Admitindo a honestidade de princípios de Kekulé, voltemos ao sonho para seguir admirando este episódio da história onde houve a feliz conjunção entre a visualização de um símbolo com toda uma bagagem de conhecimento, que gerou outra imagem, desta vez de um composto químico.


BRASILESCOLA. “Descoberta da Estrutura do Benzeno” Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/quimica/descoberta-estrutura-benzeno.htm
DICIONARIO DE SIMBOLOS. Ouroboro. Disponível em: https://www.dicionariodesimbolos.com.br/ouroboros/
MALCOM, B. The benzene ring: dream analysis. Disponível em: https://www.nytimes.com/1988/08/16/science/the-benzene-ring-dream-analysis.html#:~:text=The%20first%20historical%20mention%20of,a%20benzene%20symposium%20in%201890.
MARX, G. e GILON, C. History of Chemical Notations from Alchemy to PsychoChemistr Isr. J. Chem. 2022, 62. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/ijch.202100088
OLIVEIRA J. O intrigante do sonho de Kekulé: considerações sobre a história e a natureza da Ciência . Disponível em: http://projetoseeduc.cecierj.edu.br/eja/recurso-multimidia-professor/quimica/novaeja/m4u1/12_O%20Sonho%20de%20Kekule.pdf
ROBINSON, A.Chemistry’s visual origins Disponível em: Chemistry’s visual origins | Nature
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